segunda-feira, 31 de março de 2014

CARTA PERDIDA


Ali junto ao Tejo, esquecido no meio da modernidade humana, está um marco do Correio sem uso. Viu crescerem ervas, daninhas?, viu até nascerem algumas flores coloridas. Espreitei lá para dentro, procurando postais antigos, vidas esquecidas, e não é que encontrei uma carta perdida, decerto deixada cair por algum carteiro incauto?! Rezava assim:
"Querida Mulher minha,
Vou passar em Lisboa, sem tempo para abraçar-te, mas com espaço para correr a deixar-te esta carta no marco aqui mesmo junto ao cais. Queria dizer-te tanta coisa... Queria, desde logo, dizer que tenho saudades do teu sorriso, do teu cheiro a lavado honesto, da sopa que fazes e me devolve a fé na humanidade. Tenho saudades de te abraçar, de te colar ao meu corpo sabendo que, assim, o completo. Tenho saudades de me sentar contigo, os dois descalços, agitando os pés na margem do rio. Tenho saudades, mulher, do teu abraço quente quando, gelada, te deitas depois de mim e me pedes calor. 
Ah! A vida é assim, tenho de trabalhar, de ver a noite confundir-se com o chão líquido que me embala, de procurar na lua as palavras de boas-noites que prometeste enviar-me sempre pela estrela mais brilhante. Custa saber-te perto e não poder desembarcar. Mas a vida é assim, dizes tu, a gente tem de aprender a não poder e sorrir. Coisa esquisita, essa, de não poder e sorrir. Ah mulher, queria fugir daqui, correr pelas ruas empedradas e húmidas, chegar a casa e ter-te, surpreendida, com a humidade que te inunda o olhar sempre que a felicidade transborda do coração. Queria até, imagina, convidar-te para um naufrágio a dois.
Vou deixar-te esta carta aqui no marco mais próximo, e espero que o carteiro não a perca pelo caminho... Se se perder, terás de te satisfazer com a imaginação e com o brilho das estrelas. Como eu faço. Às vezes, vejo o teu olhar escuro na primeira estrela, sinto o teu cabelo castanho na madeira escura do meu beliche.
Para ti, vai um beijo com a intensidade das ondas, com a energia do vento, com a alegria do sol.
Até um dia. "

Quem conhecer a destinatária, por favor entregue a carta!Não sejamos cúmplices da actual desatenção emocional...


sábado, 29 de março de 2014

ABRAÇO

Tenho um sonho. Um sonho adiado sempre, tão adiado que o imagino realizado ao menos na hora da morte. Queria um abraço forte, um olhar atento, um receptor atento às mil ansiedades que inundam a minha cabeça e transbordam do meu coração. Queria, na hora da minha morte, ter um abraço intenso e fechar os olhos envolta em ternura real e desinteressada. Queria... não ter de bater nas rochas da indiferença e do descrédito para não ver a espuma da minha própria destruição.

sexta-feira, 28 de março de 2014

Repetição

A gente sonha, acredita, desilude-se. Desiste. O Tempo passa e a gente sonha, acredita, desilude-se. Desiste. O Tempo passa e a gente sonha, acredita desilude-se. Sendo eu a gente, fico a pensar se sou masoquista, se esquecida, se louca mesmo... Por mais que os meus alunos me desiludam, com desistências sem justificação, continuo a sonhar com projectos que lhes permitam crescer!

quinta-feira, 27 de março de 2014

Alma Perdida

De vez em quando, talvez quando os problemas crescem e as preocupações se avolumam, vem-me à memória a história do indígena que se sentou à espera da alma que perdera nas pressas impostas. 
Também me apetece sentar-me e ficar muito quietinha, em silêncio, esperando a minha alma que anda a monte. Não sei onde foi, não sei o que fizeram com ela, não sei se a esqueci nalguma paragem inoportuna da minha existência. 
Achando sempre que ela era incómoda, que chegava a carregar-se excessivamente de negruras, agora sinto-lhe a falta que se corporiza no vazio imenso que me molha o olhar. 
Se, por acaso, a minha alma não voltar, que serei eu mais do que, como dizia Pessoa "cadáver adiado que procria"?

segunda-feira, 24 de março de 2014

Aprendizagens

Assim como há aprendizagens há, creio, desaprendizagens. As primeiras acontecem quando há sentido, Verdade, construção e justiça; as segundas ocorrem quase sempre... quando os alunos esbarram com uma realidade torpe onde os adultos mostram a falsidade de uma sociedade oca, hipócrita e feita de jogos de interesse. Quando esbarro com desaprendizagens, irrito-me, protesto, desespero. Mas depois, no silêncio calmo do meu pensar, reconheço que é bom que as desaprendizagens ocorram. Afinal, é neste mundo cão, sem ofensa para os cães de que tanto gosto, que os jovens vão viver...O branco e o preto são, apenas, duas faces de uma só realidade que, só para complicar, pode incluir também todas as cores do arco-íris. Porque, verdade mesmo, o mundo não é colorido, é colorível, e cabe a cada um escolher as cores com que quer pintá-lo!

sábado, 22 de março de 2014

POR FAVOR!

Peço com jeitinho. Por favor, puxa uma cadeira e senta-te aqui comigo. Ajuda-me a escrever a lista das decisões, vê comigo as paredes que pedem limpeza, repara nas flores brancas que enchem a cerejeira que, milagrosamente, escapou ao ataque assassino dos vizinhos. Por favor, dá-me a mão, sorri e diz que sim. Diz que faz sentido, que vale a pena, que amanhã é já daqui a bocadinho e o sol vai voltar a nascer. Vá, não saias daqui. Ouve comigo o riso dos netos, ajuda a tratar dos patos amarelos que, de certeza, os miúdos vão querer comprar. Vem comigo preparar a Páscoa, vamos juntos à missa, sorri a cada beijo de boa noite. Por favor, peço com muita educação, não digas que é impossível, não afastes a minha fé no agora. Estou a pedir com jeitinho. 
Peço-te, Fé, que fiques comigo. A cada amanhecer, a cada anoitecer também. Por favor...

sexta-feira, 21 de março de 2014

21 de Março

Hoje, é um dia mesmo especial: - Dia da árvore, Dia da Primavera, Dia da Poesia, Dia do aniversário da minha querida sobrinha Leonor. 
Dia que o meu calendário de emoções marca com cores muito fortes. 
Árvores. As minhas, as do meu quintal, a minha nogueira que embala melros e rouxinóis, que esconde o cuco e acolhe o pica pau. As árvores da minha companhia, presenças constantes no meu horizonte.
Primavera. Uma nova hipótese, um recomeço anunciado. A hipótese de não ser a vida apenas condenação.
Poesia. A Vida! Os meus poetas sempre presentes, as frases que me fazem ser quem sou, os pensares que me permitem existir e SER para além do óbvio. Sophia e Pessoa sempre. A música que as palavras tornam mais verdadeira, a capacidade de sentir outras Presenças no silêncio das palavras gostosas que leio repetidamente.
Dia de aniversário da Leonor. A minha sobrinha de olhos negros, intensos, mágicos e profndos. A ternura dos afectos que são eternos. 
Dia 21 de Março. Um Dia mesmo especial!

quinta-feira, 20 de março de 2014

Cimeira da Democracia

Já passaram dois dias, mas eu ainda estou a vibrar de entusiasmo com a prestação dos alunos da minha escola, a São Lourenço, na Cimeira das Democracias! O convite veio da Universidade Católica, Instituição que respeito e admiro, e a resposta do Clube Europeu não se fez esperar: - Estariamos presentes, representando o Brasil, para discutir formas de consolidar a Democracia, para encontrar, pela via do diálogo e do confronto de ideias, soluções capazes de melhorar (um pouco que fosse...) o mundo actual. 
Preparado o tema, já sentindo o sangue sambar em vez de correr, lá nos fizemos ao caminho, apertadinhos na carrinha que a Câmara cedeu para um dia de trabalho. Não exagero se afirmar que os nossos alunos estiveram entre os melhores. 
Para mim, foram os melhores! Argumentaram, mostraram conhecer os assuntos e as diferentes realidades, souberam ouvir e aceitar outros pontos de vista. No regresso, estranhamente não exaustos, a discussão continuou. E eu, num fingido adormecimento, escutava-os. Ouvi-os falar de nós, adultos, pais e professores. Ouvi críticas realistas e cheias de humor, revi-me nalgumas..., e sorri ao ser confrontada com práticas adultas absurdas. No dia 18 de Março, tenho a certeza que muitos jovens cresceram e aprenderam. Foi um dia de aprendizagens efectivas, participadas, construídas e, por isso, definitivas. Estou ainda cheia de dores nas costas, foram seis horas de má posição na carrinha Hiace, mas valeu a pena!
Hoje, mais de 48 horas passadas, ainda oiço o entusiasmo da discussão e não esqueço as propostas exequíveis que eles fizeram para que a Democracia não seja apenas uma palavra bonita...
" Cuida de mim, se não, eu desaparecerei. Tua Democracia" esta frase, projectada pelo especialista Larry Diamond, vindo dos EUA, da Universidade de Stanford, continua a ecoar dentro de mim. 
Será que nós cuidamos dela, 40 anos depois de a termos conseguido?

quarta-feira, 19 de março de 2014

DIA DO PAI

Pai, fazes-me falta. Lembro o teu sorriso, a forma doce como vias, comigo, adormecer o dia, os passeios longos, as viagens, a procura daquele restaurante, aquele de que nos tinham falado... Tenho saudades da tua pressa constante, das idas rápidas à praia porque tu não sabias estar quieto muito tempo. Recordo tanta coisa! As caçadas clandestinas, a casa cheia de flores para receber os teus muitos amigos, a preocupação com o bem estar de todos, as visitas a Coimbra que apelidavas de romagens de saudade. 
Saudade é o que sinto hoje. Esta dor funda, apertada, impossível de aliviar.
Hoje, na nossa Serra, bem cedo ainda, ouvi o cuco cantar. Abri a janela da varanda, deixei entrar o sol tímido de inverno, voltei a ler a máxima que nos deixaste na parede "O oxigénio dos ares é dos melhores medicamentos//muitos o desprezam//por não custar dinheiro". Há tanta coisa que desprezamos por não custar dinheiro... A compreensão, a ternura, o tempo da amizade, o amor até. Desprezamos até o outro e, às vezes, desprezamo-nos a nós mesmos. Eu faço-o.
Pai, fazes-me tanta falta. O tempo, o meu, ficou mais vazio e eu sinto-me mais  sozinha.
Pai, ensinaste-me que Deus sabe tudo mas, cá para mim, Deus não sabe como foi injusto ter-me deixado sozinha...
Pai, hoje é o teu dia, dizem. Para mim, o teu Dia é cada dia. Cada olhar no horizonte que alcanço da varanda pequenina, cada anoitecer na Serra, cada caminhada à beira-mar, cada ouvir do cuco que anuncia a Primavera. Pai, quero acreditar que estás aí. Aqui. Que vigias e estás perto. Mas tenho tanto medo... Fazes-me tanta falta!

segunda-feira, 17 de março de 2014

DO ALTO

 Sobe-se ao Arco da Rua Augusta e, lá de cima, a visão do Mundo, do nosso mundo português, purifica-se. Lisboa, cidade de sol e brilho, abraça o Tejo, e as nossas memórias vêm ao de cima. Ali está a estrada líquida dos sonhos perdidos, além a Ponte da ditadura renomeada Liberdade, lá em baixo o Terreiro do Paço, que nem é terreiro, nem alberga qualquer paço... 
Reconhecemos a cidade, descobrimos edifícios e saboreamos o silêncio que nos acompanha. Perto de nós, um pé gigantesco. Olhei-o com surpresa. Li ali a mensagem simbólica de outras caminhadas, de outras passadas imortalizadas,  agora feitas pó e saudade...

domingo, 16 de março de 2014

Limitações


Chegou a Primavera com o Verão a reboque. Está calor, para mim excessivo, e as pessoas procuram as praias, as esplanadas frescas, o descanso em lugares soalheiros. Em Lisboa, isso não é fácil... Porque, à sombra da ditadura do desporto, com essa mania moderna de que correr faz bem, encerra-se a ponte, vedam-se acessos e toca de irem (os que querem) passar a ponte a pé...Os que não querem, ainda que sejam a maioria, que se lixem. Que fiquem em casa. 
É esta a visão da democracia em Portugal, decidem as modas, e as minorias... Porque não vão as pessoas correr para os estádios, à beira-mar, em Monsanto?! Como me irrita que me vedem caminhos, que me limitem na minha mobilidade. Eu também pago impostos, IMENSOS, porque tenho de levar com estas práticas que me condicionam?
Este post vai-me valer mil insultos...Mas eu nem quero nem saber! Que chatice!

sábado, 15 de março de 2014

De Cima

Lá em cima, no alto do arco da Rua Augusta, fica um dos melhores miradouros de Lisboa. De lá, vêem-se telhados, pessoas minúsculas e gostosamente silenciosas, e o Tejo sempre! A estátuta, grande e de costas para nós, deixa-nos ver pés descalços. De Gama? de Viriato? do Marquês? Não interessa porque são mudos, e olham sem ver o Tejo, "futuro do passado". Não perco tempo a olhá-los, encosto-me e fico reconhecendo a cidade: - Mansardas com gente, narrativas por escrever, lojas modernas, esplanadas, o Castelo por limite. Curiosa e estranhamente, lá no alto, onde não chegam naus nem caravelas, estão dois cabeços suportando força de amarras que nada seguram. Com certeza é a força das Descobertas, a presença da época de ouro deste país que é Portugal. Mas, curiosa e tristemente, as amarras não tiveram força para segurar o futuro que, hoje, é presente triste...

sexta-feira, 14 de março de 2014

VIAJAR

"Viajar. Perder países (...)" Oiço no silêncio este verso aprendido no Pessoa eterno. Vejo passar o campo florido, reparo nos espelhos de água onde as nuvens se penteiam, e ecoa ainda em mim a ideia de perda. Faz-se presente a ausência, cruzam-se outros percursos muitos, de viagens irrepetíveis, de paisagens feitas de farrapos de outro ser. 
Passa o tempo, passa o campo, passam os tapetes brancos, os castelos das vilas e cidades que atravesso, veloz, pensando no destino, presa no que deixei para trás. Chego e não vim. Na cabeça pesam tarefas, projectos, anseios, sonhos compridos. No coração dançam memórias, grinaldas floridas, e o ritmo de jazz que me acompanha devolve-me a rumba que gosto de dançar.
Viajo. Se perco países, não sei. 

quarta-feira, 12 de março de 2014

INJUSTIÇA

Há muitos anos, talvez dez, que participo no Parlamento dos Jovens. Muitas vezes, por mérito exclusivo dos alunos, a minha Escola, os meus alunos, ganharam. Algumas vezes, perderam. É assim o jogo democrático, é assim que se aprende a crescer e a participar. Quando o debate surge e a discussão se faz de verdade e diferença, é com entusiasmo que vejo os alunos participarem. O pior, o que me incomoda e amargura, é quando a falsidade impera e a injustiça vence. Tenho muitas dúvidas sobre a eficácia de um jogo de aprendizagem democrática onde, por exemplo, os candidatos são impedidos de votar em si mesmos... Será que o Dr. Passos Coelho vai votar em José Sócrates? Não me parece...
É importante, defendo, que os jovens se confrontem com os erros da democracia, que compreendam que nem sempre vencem os melhores, que há, sem dúvida, uma ditadura de números . Mas não me parece importante, ou sequer razoável, que os jovens aprendam a falsear, a votar nos piores para impedir sucessos alheio, a votar, enfim, de estâmago danado. 
Penso que o Parlamento dos Jovens já se esgotou. Hoje, encaro-o como uma actividade para preencher calendário. Apenas.

terça-feira, 11 de março de 2014

INTERMÉDIOS

Calhou-me, hoje, ir vigiar a realização do teste intermédio de matemática numa turma de 11º ano. Vigiar é um serviço que detesto fazer! Sei que tem de ser feito, claro, mas detesto que me toque a mim... Não gosto de fazer de polícia, não gosto de estar tanto tempo só a olhar, não gosto da ansiedade que vejo nos alunos. Mas, enfim, não se pode viver fazendo só o que se quer e, por isso, cumpro o melhor que sou capaz esta tarefa. (Como cumpro outras, porventura bem mais idiotas...) 
Mas, hoje, deu-me para pensar que talvez estejamos a abusar de exames e provas. Exames, provas intermédias, testes e, no fim, pouco tempo para a construção efectiva de aprendizagens. Também hoje, protestando por eu os desafiar para a dramatização de uma peça, os meus alunos de 8º ano alegavam ter onze disciplinas! Incrédula, fui verificar. Têm mesmo!!! Como é possível? Como podem os miúdos aprender mesmo, trabalhar nos seus portefólios, fazer leituras, gostar de aprender a aprender?! Como podemos defender, como faz - e BEM! -, o Ministério da Educação, a valorização da leitura, o treino da escrita, a aprendizagem da expressão oral, com uma carga de disciplinas assim?! 
Pensando em tudo isto, no nonsense que predomina no sistema educativo português, não consigo deixar de respirar de alívio por já não ter filhos na escola...

segunda-feira, 10 de março de 2014

PARTIR

Há cerca de seiscentos anos, de uma praia de Belém que já o não é, partiam portugueses carregando sonhos. Indiferentes a Velhos do Restelo, partiam carregando vontades, sentidos a haver, desejos de mudança. Na praia ficavam as mulheres, os inválidos, as crianças, presos a uma condição dada por uma nascença sem opção.
"Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades" e a velha torre é, agora, lugar de romagens turísticas. Contudo, o desejo de partir continua. Agora, o desejo já não se faz de sonhos de grandeza colectiva mas, sim, de ambições pessoais. Ouvem-se candidatos a lugares europeus, sobretudo Coelho e Rangel, e adivinha-se-lhes o desejo de partir, a vontade de escapar a uma tristeza castradora de possíveis que faz a realidade do Portugal de 2014. Oiço-os sem vontade. Cansa-me o vazio e quanto mais eles falam mais vontade eu tenho de não votar. De partir também, de vez, para um Mundo diferente. 
Não sou europeísta, esta Europa pouco me diz, mas incomoda-me o vazio de políticas que ferem e não constroem futuros de sucesso senão para alguns...

domingo, 9 de março de 2014

DOMINGO

E é domingo. A preguiça encomprida-se, o céu cinzento embrulha a alma e a vontade de sonhar entra de mansinho, sapatos de algodão, impedindo a realidade de chegar. Oiço-as discutir. A vontade de sonhar impõe-se, empurra a realidade para longe, para o amanhã daqui a bocadinho, quase segunda-feira, e ganha espaço. O quarto enche-se de farrapos bons, viagens felizes, projectos eternos, memórias e ambições. Não há lugar a resgates, a guerras injustas (todas as guerras são injustas), a imposições de solidão. É domingo. Lá fora há já rouxinóis sonoros e o cuco insiste em martelar o tempo. Ecoa em mim a cantilena decorada "cuco milharuco, cuco da ribeira, diz-me quantos anos me dás solteira". Que vontade tinham as raparigas de casar.., Quantas ilusões cantadas! 
Sem tempos obrigatórios, desligando os irritantes telemóveis, saio para o quintal. É preciso renovar a cameleira roubada, regar a que restou que, tristemente, protesta a solidão em que ficou. A vida a pares faz mais sentido, garante-me ela. Reparo nos botões a abrir, crianças temendo a vida, e empurro o cão para longe para não incomodar a plantinha sofrida. É domingo! Concedo-me o luxo de não ver gente, de não ouvir notícias, e concluo que a vida é muito melhor agora, em tempo de preguiça solitária.

sábado, 8 de março de 2014

DIA DA MULHER

Embora ache que compreender uma MULHER é uma tarefa impossível, no dia que nos é dedicado partilho um poema que me chegou de oferta:

MULHER

Para entender uma mulher
é preciso mais que deitar-se com ela…
Há de se ter mais sonhos e cartas na mesa
que se possa prever nossa vã pretensão…

Para possuir uma mulher
é preciso mais do que fazê-la sentir-se em êxtase
numa cama, em uma seda, com toda viril possibilidade… Há de se conseguir
fazê-la sorrir antes do próximo encontro

Para conhecer uma mulher, mais que em seu orgasmo, tem de ser mais que
amante perfeito…
Há de se ter o jeito certo ao sair, e
fazer da saudade e das lembranças, todo sorriso…

- O potente, o amante, o homem viril, são homens bons… bons homens de
abraços e passos firmes…
bons homens pra se contar histórias… Há, porém, o homem certo, de todo
instante: O de depois!

Para conquistar uma mulher,
mais que ser este amante, há de se querer o amanhã,
e depois do amor um silêncio de cumplicidade…
e mostrar que o que se quis é menor do que o que não se deve perder.

É esperar amanhecer, e nem lembrar do relógio ou café… Há que ser mulher,
por um triz e, então, ser feliz!

Para amar uma mulher, mais que entendê-la,
mais que conhecê-la, mais que possuí-la,
é preciso honrar a obra de Deus, e merecer um sorriso escondido, e também
ser possuído e, ainda assim, também ser viril…

Para amar uma mulher, mais que tentar conquistá-la,
há de ser conquistado… todo tomado e, com um pouco de sorte, também ser
amado!”

Carlos Drumond de Andrade

MIRTILOS

Sonhara com eles. No sonho, apareciam maduros, azulados, a culminar a tentação do gelado saboreado na esplanada de Florença. Acordara a pensar neles, nos mirtilos, e saíu de casa  disposta a encntrá-los. Procurou-os nas grandes superfícies, onde eram inexistentes, e recusou substitui-los por amoras, bem doces - garantiram-lhe. Não!Era mesmo mirtilos que queria! Estava farta de fazer concessões, de reciclar vontades. NÃO! 
Esgotados os espaços da globalização, tentou as pequenas mercearias de Bairro. No carro, por única companhia, a alusão constante ao Dia da Mulher. Ao seu dia, afinal. Mas, para ela, o dia era dos mirtilos com que sonhara, dos mirtilos que desejava. Sem rotinas a cumprir, ainda há sábados de lazer, continuou na sua busca pelo sonho. Telefonou a amigas, esvaziou até as gavetas do congelador onde, às vezes, guardava esses frutos coloridos e saborosos. Tudo sem sucesso! No seu dia, no Dia que o Mundo dedicava à Mulher, quando parecia haver uma brecha na rotina, ela não conseguia realizar o desejo simples, tão simples, de comer mirtilos! Viu os campos cheios de flores, as árvores com cor anunciada, a água a correr em cascatas inesperadas, mas de mirtilos nem o cheiro... Voltou a casa desiludida. 
Nunca é possível, a uma mulher, cumprir o sonho no momento em que o quer! Nem quando deseja coisas simples como, por exemplo, comer mirtilos!!

sexta-feira, 7 de março de 2014

O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá

Lendo o português com açúcar de Jorge Amado, voltei à fábula linda do Gato Malhado e da andorinha Sinhá. É uma ternura construída na voz dos bichos que, vezes demais, é mais real do que a voz dos homens. É uma história que  amolece o meu coração amachucado e que tento sempre faça brilhar o olhar dos meus alunos. 
Dói-me fundo quando os oiço comentar que já não têm idade para histórias de bichinhos... Haverá uma idade para trancar o coração à poesia da ternura e do amor? Se há, eu quero morrer antes de lá chegar!

quarta-feira, 5 de março de 2014

OSCARES

Desta vez, tive a sorte, e a oportunidade, de ver quase todos os filmes candidatos a óscares. Não vi o Gravidade, porque detesto coisas do ar (no ar ando eu vezes demais), mas chorei com 12 Anos Escravo, comovi-me com Filomena e amargurei-me com Um Quente Agosto. Filmes diferentes, todos, para mim, provam que há seres humanos dotados para a interpretação. Meryl Steep, sem dúvida, é uma daquelas mulheres capaz de ser Margaret Tatcher e, de seguida, uma mãe e mulher disfuncional e amarga. 
Ir ao cinema é cada vez menos frequente em Portugal, dizem as estatísticas, mas eu acho que não há ecrã plasma, ou sofá caseiro, capaz de substituir a magia da sala escura, do som intenso, das largas panorâmicas. Se me irritam as pipocas, e irritam!, cativa-me a escuridão que esconde as lágrimas, a força da imagem que, por vezes, me esmaga.
Filomena seria, para mim, o filme mais premiado este ano. Mas não foi. Talvez eu não perceba nada de cinema, ou talvez os critérios sejam outros que não os meus. Seja como for, concluo que ainda há muito bom cinema e, tirando Um Quente Agosto, filme agressivo emocionalmente, deprimente e terrível, tenho visto grandes películas ultimamente. É bom que assim continue porque o cinema é sempre uma forma de escapar às tristes fitas do quotidiano...

segunda-feira, 3 de março de 2014

A CAMELEIRA

À porta da minha casa, num canteiro que muito estimo, tinha duas cameleiras. As duas foram compradas pelo meu genro, num exercício de agricultura terna, e eu cuidava delas com carinho. A da direita, mais exposta ao sol que rareia, estava carregada de botões. Prometia uma Primavera, se ela chegar a existir, bem colorida e alegre. Sempre que entrava em casa olhava as minhas cameleiras, reparava na forma como os botões cresciam e engordavam até, e a minha alma animava-se. Acho que funcionava como um bálsamo para a minha existência... 
Hoje, quando sai de casa, vi que fui roubada! Alguém, um ladrão bandido, entrou na minha quintinha e roubou a cameleira da direita. Roubaram os botões por desabrochar, roubaram a minha alegria colorida a haver. Olho o vazio que ficou no meu quintal e experimento uma revolta furiosa. Quem será tão reles, tão mau (ou má), para roubar uma linda cameleira prenha de cor e alegria?!

domingo, 2 de março de 2014

APROVADOS

Há uma publicidade, julgo que da Renault, que apregoa "Usados e Aprovados". Agora, com a saída da Troika após a 11ª avaliação, ecoa na minha cabeça esta frase. Somos assim uma espécie de povo usado, gasto, com muitos quilómetros rodados, muitos acidentes e agressões, que, de forma para mim humilhante, somos avaliados e: Aprovados! Estamos aprovados, tal como os carros usados, para fazer mais uns quilómetros sob controlo apertado, com idas frequentes à oficina e com um selo mais colado na alma! Vamos continuar a ser mal governados, explorados, injustiçados, mas sê-lo-emos muito mais felizes porque, agora, temos a garantia de Aprovados... Lembro também os maus alunos, ignorantes e incapazes de aprender, que ficam felizes quando conseguem copiar nos testes para ter nove valores e meio. Arredonda-se para dez! 

sábado, 1 de março de 2014

Dia Zero

Se eu fosse normal, mesmo normal, faria anos um dia destes. Nasci num dia 29 de Fevereiro que era terça-feira de Carnaval, eu que odeio o Carnaval, na cidade de Lisboa, eu que adoro Portalegre, num ano sem graça nenhuma que foi 1960. Sempre, em miúda, foi complicado não ter, senão de quatro em quatro anos, dia de anos. Criança, o facto servia para os meus irmãos me arreliarem, dizendo que eu não existia, uma vez que não havia o dia do meu nascimento... Mais velha, era até divertido porque recebia os parabéns a dobrar!
Agora, gosto do dia que não é. Gosto de não ter dia de anos, embora tenha já uma certa ligação especial ao 1 de Março por ser o dia a seguir ao 28 de Fevereiro. Penso que não faço anos, porque não há dia, e assim iludo mágoas, solidão, memórias e saudades. Se eu fizesse anos hoje, se em vez de dia 1 de Março fosse dia 29 de Fevereiro, gostaria de ir almoçar a ver o mar, de receber muita ternura e amizade, ainda que só em sms, e de poder dizer que é bom marcar o tempo quando este se faz de construções cúmplices, efectivas, totais!